Reconhecer o problema do licenciamento é um avanço, mas continuar a ignorar o subfinanciamento e a desatualização da tabela de atos é fechar os olhos ao verdadeiro bloqueio do setor convencionado.
O Programa do novo Governo dá, finalmente, um sinal claro de que compreende o que está verdadeiramente em causa no atual regime de licenciamento em Saúde. A proposta de substituir o atual labirinto de exigências e excesso de pronúncias, por um modelo de comunicação prévia com fiscalização a posteriori, representa mais do que uma simplificação administrativa: é um alinhamento claro com o que a Associação Nacional dos Laboratórios Clínicos (ANL) tem vindo a defender e com aquilo que os laboratórios convencionados há muito exigem e, principalmente, necessitam.
Esta convergência não poderia ser mais oportuna. O recente estudo comparativo europeu que divulgámos sobre o regime de licenciamento aplicável aos laboratórios de análises clínicas, revelou uma realidade preocupante: o atual modelo português é excessivamente burocrático, discriminatório, profundamente desajustado e marcado por exigências fixas e desproporcionadas, assim como por cargas documentais elevadas e dispersas entre múltiplas entidades, o que gera morosidade e sobreposição de exigências. O resultado reflete um modelo que penaliza, sobretudo, os pequenos e médios laboratórios, desincentiva a presença territorial descentralizada e favorece a concentração do setor.
Em contraste, países como a Espanha, França, Alemanha, Bélgica e Reino Unido, adotam sistemas mais simples, baseados na responsabilização técnica, na confiança em certificações de qualidade e numa lógica de fiscalização posterior. Esta formalidade excessiva do regime português não garante uma melhor qualidade, apenas cria barreiras formais e impõe custos, onde devia criar soluções efetivas, sob o argumento da ausência de alternativas enquanto justificação para a inércia de um modelo ultrapassado. Hoje, este argumento já não se sustenta: as soluções existem, os problemas estão identificados e, mais do que nunca, há o reconhecimento público da necessidade de fazer diferente.
Mas, este é apenas o início de uma reforma no sistema de Saúde do país que precisa de ir mais longe. Enquanto o licenciamento avança no discurso político, outros entraves estruturais, tão ou mais urgentes, permanecem intocados e continuam a penalizar quem presta cuidados e quem deles depende.
O Decreto-Lei n.º 139/2013, regula as convenções em saúde e determina, em linha com o restante quadro normativo, que o setor convencionado visa garantir a resposta, em tempo útil, do próprio SNS. As convenções têm, expressamente, por objetivos garantir a equidade no acesso dos utentes aos cuidados de saúde, a complementaridade, para colmatar as necessidades do SNS, a liberdade de escolha dos prestadores pelos utentes, quer do SNS, quer de entidades convencionadas, e a garantia de adequados padrões de qualidade da prestação de cuidados de saúde. E tal Decreto-Lei, consciente e expressando a essencialidade de tais objetivos, igualmente estabelece que os valores fixados unilateralmente pelo Estado pelos atos convencionados devem assegurar equilíbrio entre eficiência e qualidade.
Porém, assistimos, há mais de uma década, a um congelamento completo dos valores unilateralmente fixados e pagos pelo Estado aos convencionados, degradando o acesso, a qualidade e a própria coesão territorial do Serviço Nacional de Saúde. Neste período, os custos de operação dispararam de forma significativa: os custos dos salários dos profissionais terão aumentado, em média, cerca de 60%, de 2013 a 2025, acompanhados de uma subida de custos estimada em pelo menos 40%, sejam relativos à energia e utilidades, sejam a outros bens necessários para a atividade. Este desfasamento tem sido suportado, maioritariamente, pelos operadores convencionados. A consequência não pode deixar de ser clara: há, hoje, fruto de uma erosão acumulada, um risco iminente de colapso da rede convencionada, seja por fecho de unidades, seja por simples desinteresse em continuar a prestar serviços ao SNS a valores de há 12, 15 ou mais anos. E, com isso, um risco grave de fragilização acentuada da capacidade de resposta complementar do SNS, tão necessária sobretudo em zonas mais carenciadas ou de menor densidade populacional. Acreditar que o setor convencionado garante a resposta complementar com tabelas e atos fixados há mais de uma década, é um ato de fé – e a fé, só por si, não paga salários, reagentes nem inovação.
Recorde-se que mais de 80% dos diagnósticos clínicos assenta em Meios Complementares de Diagnóstico e Terapêutica. Negligenciar a sustentabilidade da rede convencionada equivale, portanto, a fragilizar o próprio Serviço Nacional de Saúde: quando o setor complementar falha, o SNS perde capacidade de resposta e equidade territorial.
Se este desfasamento da realidade dos valores convencionados compromete a sustentabilidade do setor, o mesmo se aplica ao desfasamento crónico da tabela de atos convencionados, que compromete diretamente o acesso aos cuidados necessários. Muitos exames essenciais ficam de fora do catálogo disponível aos cidadãos, forçando os utentes a deslocações maiores ou ao pagamento direto dos mesmos, limitando o seu acesso a diagnósticos que são essenciais.
Face a esta situação, o compromisso político do Programa do novo Governo com a simplificação dos licenciamentos constitui um primeiro passo estruturante. Mas, este passo, por si só, não resolve integralmente o problema na sua base. Sem um financiamento adequado e atualizado do setor convencionado, nem mesmo o regime simplificado conseguirá assegurar a capacidade necessária para responder à crescente procura e complexidade dos cuidados convencionados em Portugal. É esta combinação, entre uma simplificação administrativa e um financiamento justo, que nos permitirá ultrapassar os desafios estruturais que enfrentamos. Confiamos que, desta vez, a reforma será verdadeira e corajosa. Que o imobilismo passe a ser apenas uma nota de rodapé da história, e que o poder político reconheça, de facto, que cuidar do setor convencionado é cuidar do SNS.
Publicado na CNN Portugal a 23 de junho de 2025
Reformar com coragem: o primeiro passo de uma mudança necessária – CNN Portugal